sábado, 23 de julho de 2011

Núcleo



... Om ... e tudo se esvai como sangue que escorre de ferida aberta até se extinguir, e então se transforma, nada se perde tudo se transforma, e separações são sempre imaginárias, eu nunca me separo do todo. Os instantes desmancham as coisas como uma linha puxada do tricô, até que os próximos instantes com suas agulhas constroem blusa nova, os anos esvaem as gerações, células mortas dão lugar a células novas, e o corpo de Deus agoniza no hospital. Suas células estão doentes, Deus delira de febre na enfermaria, eu, pequena célula de seu corpo, busco a cura, se me curo, curo parte de seu corpo, mas preciso do meu núcleo, meu núcleo me conta coisas horríveis, meu núcleo pede que eu abrace minhas células irmãs podres, minha epiderme joga a culpa nas outras células por nosso repouso agonizante no leito, mas a cura é um mergulho no núcleo, núcleo que contém amor repugnante, e eis a cura, e eu que sempre me defendi, e eu que sempre quis o limpo e o certo, beijo e envolvo com os braços células horríveis, células em guerra, células cegas de seus núcleos, células que nem se quer percebem que pertencem a um mesmo corpo, meu núcleo me atraí como um íman, eu juro que eu não queria o amor, nunca me perdoei, eu que sempre impus minhas armas, munida de palavras que ferem até os dentes, minhas palavras são espinhos venenosos, e a culpa? A culpa é delas, grita a minha epiderme, a seca e as enchentes vem de Deus, sou isenta de culpa, Deus castiga porque é Pai, e assim eu encosto minha cabeça no travesseiro e durmo o sono dos justos, oh meu núcleo vazio, porque me chamaste? Teu vazio me embriaga, teu silêncio sufoca meus sons de ira, o que posso contra ti, já não posso contra mim, ainda sei fugir de ti, se ainda não caí em ti, é porque me dependurei em um galho da epiderme, olho para baixo, pr’o teu abismo, minhas mãos suam, elas, escorregadias, implorantes, por medo de cair em profundidade. O ar lá de longe é da cor do céu, e no meu núcleo nenhuma resposta, nenhuma palavra, nenhum pensamento. Dependurada no galho vejo a cara do amor, que do abismo me olha, mudo silencioso. Olhos que me desafiam para um salto, eu digo não ao mesmo tempo que escorrego e não quero resistir, eu quero Deus de pé, fora do leito. Eu queria um médico, passaria para ele a responsabilidade de curar o enfermo, eu? Eu rezaria para nosso Senhor Jesus Cristinho, que afinal de contas nasceu para salvar a humanidade, e você por favor não me amole porque não quero ser crucificada, o senhor por favor me entenda, se esse abismo não fosse um nada, é que do tudo como você sabe, quase tudo tem um nome e me sinto mais segura, esse nada que me arrasta, indefinível, sem nome sem explicação, meu núcleo é um profundo, fundo não vejo não, por culpa dele estou perdendo os fatos da minha vida, estou me perdendo, estou me achando, estou rindo como uma tola que nada sabe, células gritam, células correm, células espertas, se fossem bobas cairiam no abismo, e o mundo? O mundo é dos espertos que ainda não despertaram, células que poliram suas epidermes que reluzem brilhantes, desfilam cansadas, risonhas e vão se esvaindo sem nunca perceberem seus núcleos, os que caem no abismo? Mistério para mim! Os que caem no abismo são os “loucos”, se entregam para o nada, vivem por aí, loucos, bobos, choram lágrimas de sangue e dizem que nada sentem, recebem farpas, garrafas de vidro quebradas e dizem que foram abençoados. Eu sou minha única salvação. Eu queria você! Quando eu tinha você minha vida era risos, era lágrimas, eu corria com você no fio da vida sem saber que me esvaia, sem saber que me transformava, eu não sabia, eu respirava desapercebida do ar, eu vivia fatos sem saber que tricotava meu destino, o nosso destino, perdi você, eu me perdi, ganhei a nós como matéria no espaço, não te quero mais porque me perdi, não posso mais ser só eu, agora eu tenho tu, ele, nós, vós, eles colados em mim, não sei como que não posso mais rir e chorar como antes, eram os meus passos, era a minha voz que eu seguia naquele túnel, eu não me via e corria para mim com necessidade do meu abraço, necessito do meu repouso em mim, ganhei um mundo que não explico, eram as formigas que trabalhavam incansáveis, eram as moscas tontas no ar, as plantas existindo o tempo todo só para a minha respiração perfeita, os passarinhos sem nunca desistirem de mim, cantavam a liberdade em seus voos perfeitos, mensageiros, anunciavam o meu núcleo. Eu me encarnei na vida, como espírito que encarna em corpo novo, recém nascida, sem andar, sem falar, eu era a vida existindo na vida, a vida pura, a vida no seu núcleo. Se minhas mãos teimam em se agarrar em galhos, um dia, um dia o galho quebra e a queda é inevitável, então deixarei minhas mãos livres e soltas no ar, no ar eu vivo.


                                                                                                 Flor de Luz    

Um comentário:

E seu dedo podre, o que tem a dizer?